quarta-feira, 23 de março de 2011

Cyber Brasiliana: um jogo de Trindades




A busca pelo Sagrado e utilização do discurso mitológico como forma de interação com a realidade objetiva é característica do Homem desde que o mundo é mundo. Mesmo quando o pensamento lógico começa a ensaiar seus passos lá no século VI ou V a.C. e assume desabalada carreira a partir do século XVI, não se pode dizer que a humanidade tenha deixado de ser um rebanho de bois religiosos (sem juízo de valor aqui, por favor). A complexidade tecnológica, principalmente em tempos nos quais se houve demais falar em Singularidade e Pós-Humanidade, inevitavelmente traz à baila velhas questões que tanto ocuparam o pensamento de filósofos e sacerdotes: o que é o Homem? E o que é Deus?

Lançado em 2010 pela Tarja Editorial, Cyber Brasiliana, romance de Richard Diegues, é um passeio em alta velocidade por um futuro onde a tecnologia é a nova forma de conectar o homem ao Divino. Minha interpretação, claro, mas o viés está lá, entremeado com anti-heróis bons de tiro, garotas gostosas em motos envenenadas e vilões filhos da puta armados de alta tecnologia, quase saltando no rosto do leitor a cada parágrafo. Temos o Hipermundo, “um sistema baseado em uma super-rede de servidores, no qual as pessoas desfrutam de uma forma complexa de realidade aumentada, utilizando-a para trabalho, socialização, cultura e registro digital de todas as informações mundiais”. Essa realidade virtual possui seus próprios deuses, o 3Murti, poderosos softwares baseados na mitologia hindu, que mantém a ordem no espaço digital emulando as funções cósmicas das divindades nas quais foram baseados. Peguei-me pensando em vários momentos no decorrer da leitura sobre as diferenças entre estes deuses cibernéticos e os deuses no sentido estrito do conceito. São senhores de uma realidade onde vivem os homens, infinitamente mais poderosos que estes e responsáveis pela manutenção do status quo. No romance de Diegues, o Homem literalmente cria os Deuses e busca recriar a si próprio.

Cyber Brasiliana mostra como o presidente da poderosa corporação Sicilli e líder do Cartel tenta pôr em prática um plano para se apoderar do Hipermundo e, consequentemente, ter sob seu controle o mundo real. É engraçado ver como a Sicilli lembra um bocado companhias como o Google ou a Apple, comprando um monte de empresas que criam novas formas de utilização da Rede e incorporando-as a si, tudo sob uma bela máscara de sorriso. Serguey (Rajaram, não o Brin), o líder dos antagonistas, faz aqui o papel de Lúcifer ao desejar ele mesmo se tornar um Deus. Para impedi-lo temos um grupo formado por uma programadora chinesa grávida, um pistoleiro morto-vivo (calma, a explicação está lá) e um hacker muçulmano afastado da religião que imagino, não sei por quê, com a aparência do próprio autor. Há outros personagens, como 5.i-cent (cujo nome me quebrou a cabeça), mas acredito que a base seja esses três. Um jogo de Trindades.

Deixando o mundo virtual e sua linguagem complexa, temos o cenário geopolítico construído para a história. Aí eu discordo do prefácio da obra: um mundo tomado por guerras que fragmentam continentes inteiros, reconfiguram identidades nacionais mais profundamente que em séculos, invertem os pólos políticos do Norte para o Sul e subverte as relações familiares de modo a desagregar os laços interpessoais é um bocado distópico. Qual é a diferença entre o gado bovino e o gado humano, se ambos se mostram incapazes de transformar a realidade física por estar em permanente conexão com a realidade artificial? Não, não há utopia no cenário que Diegues desenha. Aos moldes de Admirável Mundo Novo, é um inferno limpo e organizado. Mas ainda um inferno. E convenhamos: assim é muito mais legal. Não há aventura na Perfeição. Aliás, o ser humano não combina com Perfeição, como a Matrix dos irmãos (irmão e irmã, agora) Wachowski descobriu empiricamente.

Resumindo: Cyber Brasiliana é divertido, fluido e me deixou pensando um bocado de coisas. Além de esfregar na minha cara que meu orgulho por ter instalado o Windows no meu computador sozinho é muito besta.

Você pode adquirir um exemplar e ler um trecho da obra clicando aqui. 

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